08 junho, 2007

trecho do segundo capitulo

Advertência: Lembrem que tudo publicado aqui do meu romance é rascunho, passível, é claro, de modificação e revisão.

[a propósito do cemitério]



Espiem agora esse lugar. A igreja, ao sul, se aproxima do portão principal. À leste, mas ainda sob os domínios de seus muros, as ruínas do mosteiro, aquele que foi lambido sinistramente pelo fogo ainda quando de sua construção levando a vida de sete homens dos quais nem os ossos sobraram. E se sobrassem de que adiantaria? Para decepção dos padres, eles não dariam para construir nem um nicho decente, quanto mais uma capela de ossos, isso sim, uma obra digna de nota, como a que existe em Campo Maior. Em Campo Maior, em 1732, o paiol do castelo, repleto de barris de pólvora, explodiu levando pelos ares 800 homens, mulheres e crianças, sem falar nos animais de criação doméstica. Passados 32 anos, se construiu a capela com as ossadas da vítimas: nave, teto, pilares, molduras, abóbadas, fachada, tudo, com exceção do chão em que se pisa. Os sete de V., não teriam senão a terra por sepultura: do pó ao pó. Então, prossigamos. O quintal da igreja cresce com cruzes e anjos e santos petrificados. Seu pomar é um cemitério. O primeiro anjo a ser fincado lá é aquele que se vê ao extremo sul, alinhado à porta dos fundos da igreja. Ele tem a asa direita partida. Seu olhar compassivo em direção ao túmulo foi um divisor de águas em V., pois serviu de marco distintivo entre poder e riqueza e pobreza e falta de valimento. O segundo anjo, a sudeste, é aquele que dá as costas ao portão principal e desse modo ignora a vila e todos os seus vivos. O terceiro anjo, a lés-sudeste, está cravado no frontão daquele mausoléu imponente de mármore escuro. Observe que ele tem o indicador direito apontado para o céu e, talvez, por isso, Deus sempre dá um sorriso um tanto maroto ao lembrar-se dele. O quarto anjo melhor não mostrar. Se um dia quiser o leitor pode visitá-lo pessoalmente ou numa dessas visitas virtuais tão comuns agora. Ele não está tão visível daqui e isso não é ruim. Pode ser perturbador o seu desespero traduzido nas mãos magras com as quais esconde o rosto.

Os túmulos se espalham ao redor da igreja com certa regularidade geométrica, alguns mais antigos já não podem ter seus ocupantes identificados, só o tempo e seus ácidos pode oferecer a dissolução completa. Alguns ostentarão fotografias, afinal, cemitérios também são isso, estranhos porta-retratos, às vezes um flash de alegria, às vezes a única imagem já no caixão. Fotografias de jovens que morreram velhas, fotografias de homens que morreram muito meninos e as mais impressionantes, as de crianças sempre tão belas em seus melhores trajes, sempre com aquele aspecto de incapazes de serem tocadas por qualquer sopro da morte. Só as crianças e as pessoas muito velhas conseguem manter a aura de eternidade, um brilho, ainda que não tenham qualquer crédito por isso. Esse brilho, solar e, portanto, amarelo, é diferente do brilho estelar azulado e frio que as pessoas que estão para morrer ostentam na última vez em que as vemos vivas. O brilho solar torna velhos e crianças fortes apesar de sua real fragilidade, as torna intensamente ligadas à terra e à respiração. Já aqueles tocados pelo brilho azulado, tornam-se especialmente bonitos. Uma beleza que nos atrai e nos repele. O brilho azul é um presságio da distância irrevogável que se aproxima e da qual, raríssimas vezes, tomamos consciência.

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