14 novembro, 2018






I


Eu não fui ao enterro de papai. Minha irmã mais nova telefonou, a voz baixa, atônita, comunicando a morte dele, contando as circunstâncias em que ele fora encontrado, perguntando, trêmula, depois do relato,

Você vem para o enterro?

Perguntei do que ela estava precisando em termos práticos, mas ela me garantiu que o clube militar do qual ele fazia parte cuidaria do velório e do funeral, coisas com as quais ela não saberia como lidar num momento como aquele.

Mamãe nem entende nada do que está acontecendo. Perguntou se era o pai dela que havia morrido. Ficou chorando e repetindo “meu paizinho, pobre do meu paizinho”. Às vezes ela entende que foi o marido que morreu, às vezes ela volta a chorar pelo próprio pai. A cabeça dela, você sabe...

Eu gostaria de ter ido em seu auxílio, às voltas com uma mãe que padecia de uma demência que se instalara precocemente e com o cadáver inesperado do pai pendurado num caibro da cozinha. Eu gostaria de prestar esse socorro em termos abstratos, é bom que se diga, como impulso humano, mas não de fato. É que eu não queria ver papai no caixão, me pareceu uma grande safadeza da parte dele morrer sem ter sido punido.

Ela, com a voz entrecortada por soluços, como se lesse meus pensamentos, disse que não me culpava, nem culpava nossa irmã mais velha, e que papai deveria mesmo responder pelos crimes que havia cometido, mas que não sabia, não sabia mesmo se ele havia se matado, que ela esperava que sim, que se ele não havia se matado, então significava que fora morto, e era assustador pensar que alguém entrara em sua casa e enforcara um homem velho.

Ele era forte, mas era um velho!, e nesse momento ela quase gritou ao telefone.

Os canalhas também envelhecem, quase respondi, repetindo o chavão que parecia se impor àquela frase desesperada. Mas desisti. Em que um lugar-comum ajudaria naquela hora? Eu sabia, ela sabia também, a velhice não exime ninguém, a velhice não amansa, não recheia ninguém de doçura ou de bom caráter. Isso bastava. Por outro lado, os temores da caçula de que o xerife tivesse sido assassinado, uma queima de arquivo, não eram de todo infundados, cenas de crime podem ser manipuladas, laudos médicos e cadavéricos podem torcer a verdade para o lado mais conveniente. Não sei se para não perturbar ainda mais a garota, se para tranquilizá-la, ou se por acreditar mesmo nisso, preferi acatar a tese do suicídio. Mas alguns esgotos não podem nunca ser tampados.


Não consigo tocar em nada, tudo me dá nojo, ela disse, recompondo o tom aparvalhado.

Tentei acalmá-la e prometi que iria visitá-la logo, em duas ou três semanas, e que ficaria tempo suficiente para dar alguma assistência. A última vez que a vira, ela deveria ter entre sete e oito anos de idade. Depois que cresceu, seu rosto me chegava por fotografias feitas pelo celular e nas redes sociais e em nada denunciava um parentesco comigo ou com nossa irmã mais velha.

Quando ela desligou o telefone, fui ao banheiro, lavei o rosto e depois sentei ao sofá, olhando na direção da pequena varanda do apartamento, olhando para fora das quatro paredes, deixando que me envolvesse a claridade da cidade que entrava sem cerimônia pela janela. A claridade mediada por torres feias, algumas espelhadas, muralhas opressivas com janelas e mais janelas escondendo que histórias? A cidade crescendo como um furúnculo, uma tumoração quente e avermelhada e prestes a explodir seu pus. E, no entanto, papai morto num lugar muito longe, no centro do coração do inferno, e com ele, também morta, eu mesma ou uma parte de mim, por menos que eu quisesse.

Embora uma avalanche de imagens tenha tomado minha memória desde o instante em que a notícia de sua morte me fora anunciada, das mais ternas às mais perturbadoras, eu não conseguia imaginar o velho balançando no ar como uma marionete, tampouco conceber o desenho do seu corpo imóvel em um caixão. A verdade é que fiquei paralisada por muito tempo naquele sofá, naquela sala, diante da varanda que me iluminava com uma luz de longe, sideral. Não era abatimento, mas uma espécie de catatonia controlada, como quando eu terminara de ler A metamorfose.

Gregor Samsa!, eu disse para mim mesma depois de um tempo, levanta-te e anda.

Minhas mãos formigavam levemente quando telefonei para Susana, minha irmã mais velha, em Lyon. Ela retornara para a França dois dias antes, depois que assentáramos entre nós duas os acontecimentos das últimas semanas, o depoimento de papai na Comissão, os detalhes das torturas que praticara quando estava na ativa, durante os anos da ditadura, a frustração de não saber o que acontecera de fato com a nossa mãe, visto que esse crime ele não confessou, embora concordássemos que era claro que ele a havia assassinado, como nossa avó desconfiara a vida inteira.

Ao ouvir sua voz do outro lado da linha, falei firme, inequívoca,

O Capitão Garrote se matou. Foi um covarde até o final.

Duas semanas depois arrumei as malas. Eu sabia que precisava encontrar a minha história.
 __________
| do romance O amor, esse obstáculo, Editora Patuá, 2018 |
There was a girl, Lukasz Wierzbowski
-->

Nenhum comentário: