20 janeiro, 2009

O que não está no caderno vermelho

Sobre Sábado, o livro.

Eu havia dito aqui que o próximo livro que leria seria Reparação, de Ian McEwan. Por não ser muito metódica e por pequenos saltos no percurso que são o resultado direto de não ser metódica, acabei lendo Sábado, do mesmo autor, antes.

De certo modo, isso foi uma espécie de benção. Pude me distanciar do filme e tomar contato com o autor, seu estilo, seus modos de narrar e amarrar a atenção do leitor. De modo que posso dizer que McEwan me conquistou e e isso não é pouco. São raros os autores que me "fisgam" a ponto de que eu deseje ler outras obras suas. Saramago é um deles. Machado de Assis, também. Mia Couto, não sei, ainda. O que não significa que não admire autores que me pegaram por uma única obra, caso de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.

A narrativa de McEwan é impressa num ritmo lento que, no entanto, não é cansativo. Ele alterna uma visualidade marcante e detalhista com um fundo emocional intenso, num jogo muito bem articulado entre o externo e o interno. Há uma tensão constante e silenciosa que perpassa toda a narrativa e que envolve o leitor por inteiro. Aliado a esses cenários, digamos mais pessoais, há uma marca de contemporaneidade muito forte, o que insere seus personagens num mundo muito palpável, muito possível, quer eles estejam inseridos no "nosso" presente histórico, quer estejam recuados no tempo.

Sim, como podem perceber, já comecei a ler Reparação. Mas não é dele que quero falar agora.

Toda a história de Sábado, gira em torno de um único dia na vida do neurocirurgião Henry Perowne. Nesse dia, 15 de fevereiro de 2003, Perowne passa por uma série de incidentes que mudarão sua vida, seu modo de ver e estar no mundo. Para o personagem, o mundo só pode ser compreendido pela razão, o que não deixa de ser um problema posto que está cercado por artistas talentosos: a filha, poeta estreante, mas muito bem recebida no meio literário, o filho, guitarrista e uma promessa do blues e, por fim, o sogro, poeta canônico daqueles que tem sua obra citada em qualquer livro básico de literatura. Num mundo cerebral como o de Perowne não há espaço para a compaixão.

Ora, para ele a poesia e a ficção são desestabilizadores da razão e, por isso, seu interesse por elas é raso. Sua vida de classe média alta é marcada pela ordem, pela perfeição do carro que dirige, pela estabilidade da casa em que mora. Entretanto, o mundo a sua volta parece permanentemente ameaçador: a Inglaterra entrará ou não na Guerra do Iraque, o tráfico de drogas já chegou à praça em frente a sua casa, sua mãe, portadora de Alzheimer, lembra que a posse da vida e das coisas que julgamos fazer parte dela é uma ilusão. Ah, e claro, o terror fundamentalista é uma asa sombria a ameaçar  mundos perfeitos como o dele.

Neste sábado marcado por importantes acontecimentos, Perowne bate o carro e entra em contato com o mundo sombrio e desconexo de Baxter, um bandido jovem acometido de uma doença neurológica incurável. Esse encontro, que marcará o ápice das tensões do médico, será o ponto de fissura na redoma em que vive.

Numa entrevista concedida a Daniel Piza, o autor  afirma:

Tenho tédio a histórias que não vão além dos sentimentos. O escritor precisa aprender sobre seu mundo, digeri-lo e colocá-lo de volta em outra forma. Precisamos ser responsáveis, precisamos entender mais. Eu me interesso por romances que tenham inteligência crítica, em que o escritor parece saber mais do que eu sei e eu confie nele.

Compreensão de mundo, senso de responsabilidade e confiança são, sem dúvida, coisas que McEwan consegue em seus escritos. Recomendo.

15 janeiro, 2009

Para esses tempos de guerra



A ponte não apenas liga margens previamente existentes. É somente na travessia da ponte que as margens surgem como margens. A ponte as deixa repousar de maneira própria uma frente à outra... Sempre e de maneira a cada vez diferente, a ponte conduz os caminhos hesitantes e apressados dos homens de forma que eles cheguem em outras margens... A seu modo, a ponte reúne integrando a terra e o céu, os divinos e os mortais junto a si. 

Martin Heidegger

12 janeiro, 2009

O horror, o horror!


imagem: sem crédito


São mais de 900 mortos e quase 4000 mil feridos na investida de Israel contra a Palestina.

Embalados por um certo "direito divino", fanáticos judeus e palestinos se digladiam pela posse de uma terra saqueada e ensanguentada.

O que me impressiona, nos últimos acontecimentos desse conflito, é que, ao que parece, Israel pouco aprendeu com os sofrimentos que o povo judeu padeceu historicamente (coisa que fica clara com o impedimento da ajuda humanitária aos civis palestinos) e a Palestina, ou antes, os palestinos do Hamas, pouco têm da sabedoria que se espera de um povo milenar, que é também um dos berços da humanidade. 

No meio desse conflito de tubarões de dentes afiados, fica o povo, de um lado e do outro,  a pagar uma conta muito  alta. Um povo manipulado pelos interesses políticos de suas lideranças ou pelo olhar, quase sempre distorcido, do Ocidente. Gente que, como eu e você,  tudo o que quer é viver em paz. 

04 janeiro, 2009

Menino-Aranha

Quem viveu em Pernambuco nos anos 90 do século XX certamente há de lembrar de Tiago João, o Menino-Aranha, praticamente uma lenda urbana do Recife. João Tiago, um menino franzino (daqueles de que fala João Cabral  em seu Morte e Vida Severina) freqüentava diariamente os noticiários (e páginas policiais) por assaltar apartamentos de luxo escalando prédios de alturas vertiginosas para qualquer um, ainda mais para uma criança de 7, 8 anos. Por essas façanhas, o pequeno anti-herói ficou conhecido como Menino-Aranha.

Filho da exclusão, nascido no hospital psiquiátrico Ulysses Pernambucano, o chamado Hospital da Tamarineira, o Menino-Aranha não conhecia limites e seus assaltos, eram, invariavemente, realizados sem qualquer uso de arma. Um dia, foi encontrado morto, crivado de balas, para alívio da estrutura social que, sem querer ou saber, tanto havia contestado.

É essa história, que oscila entre o fantástico e o terrível (a exemplo de O Labirinto do Fauno), que Mariana Lacerda conta em seu documentário Menino-Aranha. Lançando mão de uma narrativa horizontal,  Tiago é "contado" pelos depoimentos  em off das pessoas que conviveram com ele e pelas imagens aéreas de uma Recife muito distante do chão, muito distante da favela e da polifonia dos becos e vielas de onde surgem, diariamente, tantos meninos e meninas desamparados e, por isso mesmo, ameaçadores da ordem e modo de vida de uma classe que esquece que sua opulência e omissão é a geradora de toda violência e contradição.

Há ainda na narrativa de Lacerda algo que chamarei de "estética da ascenção".  Tiago  é percebido como um mártir, mas não exatamente nos moldes cristãos ou da esquerda. Sim, ele sobe, diariamente, a sua cruz, que pode ter 33 andares. Sim, essa cruz pode levá-lo ao "paraíso" das instituições que oferecem pão, cobertor e abrigo nas épocas mais difíceis ou ao paraíso do status de ter seu nome estampado  nos jornais. Entretanto,  Tiago João (que, talvez, não por acaso, carregue consigo os nomes de dois apóstolos) é muito mais um mártir da liberdade pessoal, dos sonhos que se desprendem do chão, da contradição que é ser criança num mundo muito, muito feio.

Ele, se pudesse, poderia até tomar emprestada uma das frases mais conhecidas de Emília, personagem de Monteiro Lobato:

Sou a independência ou morte!