08 novembro, 2007

Espectadores de Calamidades I*

[ou refletindo sobre o discurso fotográfico]

Dia desses discutia com uma pessoa amiga sobre imagens que ela fará para um editorial de moda. O x da questão é que ela produzirá imagens com uma modelo negra super bem vestida, mas na última fotografia da seqüência a moça estará catando lixo ou sobras.

Fiquei chocada com essa imagem que ainda não foi produzida. Para mim, é mais uma imagem negativa a que o negro é submetido. Não, a moça não pode apenas ir à feira se fartar das cores e sabores. Sua imagem precisa reforçar aquela do negro escravo que das sobras da Casa Grande fazia as refeições na senzala. Para mim ( e insisto nisso, que é para mim) essa imagem que ainda não foi produzida (mas que será) é uma imagem preconceituosa, de glamurização do lixo e da submissão.

Não chegamos a um consenso. Minha amiga, que é uma pessoa muito bem intencionada, que além de estilista é socióloga, diz que não há esse discurso preconceituoso na foto que fará e eu é que estou sendo preconceituosa em relação ao lixo, ao discurso do lixo. Afinal, lixo é luxo e tanto faz se a modelo é branca ou é negra. Para minha amiga, a imagem não tem a intenção que percebo e eu assumo a postura do crítico autoritário que se arvora em dizer o que é ou o que não é. Para minha amiga sou eu perceberei a imagem dessa maneira.

Será? De todo modo, isso me colocou para pensar.

Refletindo sobre imagens de guerra, Susan Sontag diz algumas coisas interessantes sobre o papel da fotografia. Para ela, " a caçada das imagens mais dramáticas orienta o trabalho fotográfico e constitui uma parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo primordial de consumo e uma fonte de valor. Sontag diz ainda duas coisas que considero pertinentes à esta reflexão:

1. "Normalmente, se existe alguma distância com relação ao tema, aquilo que uma foto diz pode ser lido de várias maneiras. Cedo ou tarde, lê-se na foto aquilo que ela deveria estar dizendo"
2."As intenções do fotógrafo não determinam o significado da foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso."

Continuo achando essa imagem que ainda não existe agressiva e profundamente equivocada. Preferia ver a menina negra poderosa na feira e talvez reciclando alguma coisa que ela trouxe de lá num ateliê, mas não abaixada na rua catando migalhas. Pode ser que eu esteja sendo rigorosa demais e realista de menos. Mas acho que a cidadania negra (que é de todos nós, brasileiros) carece, e muito de imagens de alegria, poder, beleza, satisfação.




*O título desse post é uma alusão ao segundo capítulo do livro "Diante da Dor dos Outros", de Susan Sontag.

2 comentários:

Edson Cruz disse...

Micheliny,
discussão pra lá de interessante e necessária.
o segundo comentário de Sontag é definitivo e vale para qualquer criação, inclusive a poesia.
aliás, reza o bordão que de boas intenções o inferno está cheio...
curiosa, tbém, a discussão em cima de uma foto que nem foi, ainda, realizada. uma virtual imagem. mas, aqui, mais uma vez, como em qse tudo o q vale é a idéia e o conceito que a abriga.

Felipe B disse...

Comecei minha vida de “negro pop” na MTV Brasil, em 1991. Eu era o apresentador do programa YO MTV RAPS! e trazia um novo conceito de negro na tela - eu escrevia meu próprio texto, selecionava o conteúdo que era veiculado, não falava de samba, negritude ou escravidão e defendia a beleza negra apenas como “beleza”.

Os negros me odiaram. Muitos. Muitos queriam um negro paulistano da perifeiria, falando sem plural e terminando as frases com um habitual “Tá ligado, Mano?”.

Não. Não foi apra ser estereótipo da mediocridade que eu me debricei em leituras e em entender o mundo que me cerca. Não foi para glorificar o gueto e sua suposta cultura que eu fui botar a cara a tapa na TV.

Desde então ficou claro para mim que a imagem do negro na TV ou qualquer outro tipo de mídia de massa (e mesmo na cena acadêmica) sempre foi associada ao discurso do coitado, daquele que precisa carregar o estigma de viver num país de culpa e que pretende compensar uma demografia pelo “erro histórico da escravidão”.

Hoje, acredito que nenhuma imagem produzida com atores e modelos negros deva ser questionada ou proibida. São os próprios profissionais negros que precisam definir quais são os limites que aceitam encarar em suas expressões artísticas. Caso contrário, corremos o risco de limitar as possibilidades de manifestações estéticas aquelas que são politicamente corretas.

A lição do que é estética, cultura e exploracão de imagem deve começar em casa. Em famílias com boa estrutura s´cio-cultural fica mais fácil levantar a discussão e definir um discurso que permita ao jovem negro a transitar entre os os elementos midiáticos de nosso tempo.

Agora imaginem tal situação acontecendo em uma mesa familiar em um barraco de dois cômodos em uma das imúmeras favelas que nos cercam?

Discutir sobre ter o que comer e a necessidade de sobreviver (ruídos de tiros e gritos no lado de fora da parede do barraco...) não deixa muito espaço para reflexões sobre auto-estima, estética e ética. O mesmo vale quando o garoto ou garota descobre que pelo menos os primeiros 18 anos de sua vida serão dedicados a fingir que não são subjugados pelo cano de um fuzil carregado, portado por um “igual”.

Imagine aquele que resolve abrir mão das gírias da favela, do ar malandro, dos ícones de poder que florescem na miséria (financeira, intelectual). Pior, imagine aqueles que preferem ter prazer sem rótulos, com meninos e meninas?

As manifestações culturais dos negros brasileiros são extremamente preconceituosas. A começar pelo culto ao carnaval, palco ideal para o palhaço negro perder espaço para os destaques brancos nos carros alegóricos. No futebol o caminho é o mesmo: Kaka é gênio, bem vestido, com ótma cultura geral.

Robinho? Robinho é um neguinho que vive na Europa, não é patrocindo pela Armani, e conseguiu a façanha de reproduzir em sua mansão uma favela brasileira típica, com direito a barulho, churrasco de carne torrada, pagode e nenhum compromisso com evolução intelectual.

Ou seja, fica difícil para uma modelo iniciante ter referências suficientes para questionar seu papel em um ensaio que supostamente agrediria sua posição social. Fica difícil para uma modelo iniciante negra recusar trabalho. Fica difícil para uma modelo negra entender que modelar pode ser uma forma de expressão crítica, mas para que ela possa passar esse ferramental em uma sessão de fotos, precisará de refererências para que seus gestos, postura e olhar possam dialogar dialéticamente com o conceito da fotógrafa.

Sem a capacidade de refletir sobre o seu papel na foto, a modelo negra em questão não passará de um cabide. Um pedaço de coisa. Daí, claro, pode ser disposta em um set de fotografia como um objeto qualquer.

E isso vale para aqueles que perseguem cotas na universidade, para atletas que moram ao lado dos museus e escolas de pensamento e arte mais importantes do mundo e nunca adentraram tais prédios, para atores negros que ainda insistem em aceitar papéis de bandidos e favelados, par executivos negros que não se impoem às barreiras que achatam salários e oportunidades de crescimento profissional.

Mas enquanto “nossos neguinhos e neguinhas” acharem que o canal de expressão mais autêntico e original sobre a existência negra do brasileiro for a cópia mal-feita da cena hip-hop americana, e as mal traçadas rimas de Mano Brown e companhia, que em 2007 ainda insistem que quem goza com quem quer é puta, que mulher tem que lavar a louça, que mães e irmãs são santas intocáveis que não batem siririca nem gozam fora de seus relacionamentos, que usar o plural e evitar bordões tornam um homem negro menos “truta”, e que a bandidagem é o único caminho para o sucesso financeiro para as “pessoas de cor” não vejo muita chance de algo melhorar.


A discussão sobre a aceitacão do negro hoje em dia não é mais social ou financeira. Racismo? Coisa de burro. Os negros precisam criar valor e serem lembrados por seus feitos. Quantos designers negros você lembra? Quantos carros ou eletrônicos de consumo você associa a criação por negros? Imagine se a Apple e seu símbolo máximo fosse um jovem negro? Se você encontrasse bens indústriais africanos espalhados pelo mundo inteiro e que refletissem em sua execução uma imagem de excelência, inovação e eficácia, não associaria imediatamente à imagem da etnia mais comum naquele continente? Não é isso que fazemos quanto aos escandinavos, alemães, japoneses, coreanos e chineses?

Acho que os negros brasileiros precisam, antes de tudo, crescer e aparecer, para que possam questionar pelas próprias pernas o uso que se faz de sua imagem como ferramenta midiática que perpetua a submissão a quem estiver no topo.