Euanimal
[segunda parte]
Transito nessas ruas desde muito. As velhas debulham milho, lágrimas, pérolas falsas. Eu não as ajudo e elas não me olham, ou não me percebem. Eu prossigo. Sou estrangeira, repito para mim mesma.
[Fotografia de autor não identificado]
Me duplico. Estou no trem que passa e na linha de aço estendida entre dois prédios. Me duplico novamente. Meus sapatos maculam a poça d'água enquanto bebo um whisky duplo com o amigo morto. Desaprendo-me continuamente.
[Fotografia de Dianne Arbus]
Faço listas: balas coloridas, barbante azul, absorventes higiênicos. Os carros rugem em algum lugar. Escuto-os, distantes. Têm longos dentes, garras, escamas prateadas. Não sou uma mulher. Sou uma asa.
[ Fotografia de autor não identificado]
Tenho muitos nomes. Quando um se desgasta, utilizo outro. Sob um desses nomes amei um homem, sob esse mesmo nome amei um pássaro. O homem e o pássaro foram belos e fugazes. E o mar devora a carne das baleias com uma fome que é minha.
[Imagem:The Chocolat Donut, Fred Einaud]
Um leve desequilíbrio. As ruas são de pedras irregulares. Fecho um olho e sou a Lua. Abro os olhos e sou o Sol. Meu vestido esvoaça e acho muito justo que o vento me saúde. Tenho ânsias de rever a velha sereia de cabelos azuis, mas esta cidade me contamina.
[Fotografia de autor não identificado]
Dói-me
o pé esquerdo. É uma dor indefinida. Da última vez em que ocorreu,
despi-me dessa pele e me cobri com os pelos de um animal pequeno e
sagaz. Ontem um avião riscou o céu e lembrei do vizinho que morreu na
guerra. Dele ficou um ruído que me acompanha, um beijo, talvez. E
aquela janela me convoca à invisibilidade.
[Fotografia de autor não conhecido]
Eu
imagino. E transito por aquilo que crio. E não passo disso, de uma
criação de mim mesma e da passagem que empreendo. Assim como a chuva, o
caderno vermelho, a voz que, atravessando o espelho, me quebra em mil
pedaços. Talvez por isso eu não tenha nenhum parentesco comigo. Nenhum
laço. Talvez por isso eu consiga andar por sobre o muro de cacos sem que
nenhum risque minha pele. Eu imagino. E transito pelo que crio.
[ Fotografia sem autor identificado]
[ Fotografia sem autor identificado]
Um comentário:
Eu gosto muito das máscaras de gato, porque eu tenho muitos gatos. Ontem eu comprei um novo arranhador para gato, porque o antigo quebrou.
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