19 julho, 2012

O real fragmentado


[imagem: Ana Vicente]


[ou ensaios despedaçados]

I
A pergunta que me faço sempre acerca do real: o que é o real ? Para a maioria, desconfio, há um mundo, o mundo das coisas, do cotidiano, o mundo rotineiro que pode ser ora mesquinho, ora portador de alegria. Eu tenho outra relação com isso. Não porque eu seja melhor, pois não é disso que se trata. É assim porque sou assim. Desse modo, o real para mim é feito de muitas camadas e eu as vivo ora simultaneamente, ora fatiadamente. Não entenderei nunca porque as pessoas creem que são mais reais do que Capitu, do que Riobaldo, do que Baltasar Serapião. Na verdade, a grande maioria das pessoas são menos reais que um grande personagem da literatura, tem menos interesse, menos profundidade. E isso não é algo de se lamentar. É porque é. Do mesmo modo, uma obra de arte é uma existência para além da sua forma, um grande filme ou uma grande peça de teatro é um modo que essas existências encontram de se presentificar para nós. Não, não se trata de uma metafísica. Se trata de uma multiplicidade. E é nela em que eu vivo. Hoje, todos os que leem a saga de Gregor Samsa estão apenas dando corpo para o que ele é na verdade e ele é mais do que aquilo que foi capturado no livro. Gregor Samsa sou eu. Então, não pensem nunca que essa vida é menor, ela dói, e sangra tanto quanto a sua. Só que de outro modo.


II

Luís Calixto não veria o ano 2000. Morreu sem que visse o alvorecer do novo século, mas antes disso me ensinou importantes lições sobre cultura, poesia, sobre o real mestiço de que se compõe esse Brasil latino-americano. Mestre do samba de coco da cidade de Arcoverde, em Pernambuco, Luís Calixto era um artista em ebulição lidando com a arte em sua multiplicidade de linguagens. A arte era o samba, era o improviso, era a incursão do alto no baixo, e o seu contrário, era o instrumento e o boneco que fazia com o material que estivesse à mão, o cano de pvc ou a quenga de coco. A arte era o diálogo com a alteridade. O trabalho de “continuança”, como dizia. Com ele tentei aprender a dançar e a tocar pífano. Com ele aprendi que o real tem tintas diferentes. Ele tomou pelas mãos a mim e a uma geração e ensinou algo sobre história, cultura e memória ali mesmo, na nossa cidadezinha perdida nos confins do sertão. Foi meu mestre, mestre do meu compadre Lira e dos demais componentes do extinto Cordel do Fogo Encantado, sem falar dos tantos que foram influeciados por seu trabalho agregador: as crianças dos assentamentos sem-terra, as professoras e alunos das escolas públicas, o povo, essa categoria indistinta e onipresente da qual fazemos parte você e eu. Mestre e aprendiz, Luís Calixto não teve vergonha de ensinar e tampouco de morrer aprendendo. Em seus últimos tempos de vida, se comportou serenamente perante a morte que se aproximava e da qual tinha plena consciência. Deixou o samba de coco numa segunda-feira quente de novembro de 1999, como que repetindo um dos versos que mais cantava: “Vou mimbora dessa terra segunda-feira que vem, quem não me conhece chora, quanto mais que me quer bem.’’ Seu enterro, um grande circo místico, procissão medieval sertaneja, foi acompanhado por brincantes, pernas-de-pau, tamancos de coco, palhaços sem maquiagem, numa cena digna de Fellini ou de Macondo. Na sua vida e na sua morte Lula Calixto me ensinou e me ensina que o real é outra coisa.

III
Quando a luz está acesa, perdemos o escuro. Transitar entre essas duas categorias talvez seja conseguir viver no real exato. Mas quem o consegue? Trabalho perseguindo esse real que habita o lado A e o lado B e creio que esse é todo o trabalho da arte, ou seja, conseguir dizer que uma coisa é uma totalidade, que um objeto é a soma de tudo o que se sabe e se diz sobre ele e de tudo o que não foi dito e não se sabe. Que a soma entre o vazio e o infinito é, ao mesmo tempo, imponderável e concreta. E mais uma vez recorro a uma imagem que para mim traduz essa tensão: “Hoje vemos em espelho, mas chegará o dia em que veremos face a face. Hoje conheço em parte, mas então conhecerei como sou conhecido”. Há quem me diga que esse paradigma do real e das coisas dentro do real foi superado pela urgência do virtual, pela simultaneidade exigente do virtual. Sem querer ser simplista repito que com a luz acesa perdemos a possibilidade da escuridão, os acessos que a escuridão oferece, outra verdade.

IV
Tenho certamente cerca de cinco mil fotografias armazenadas em discos, Hds e outros suportes para além do papel. É um número aproximado, obviamente não me dei e nem me darei ao trabalho de contar. Até uns dez anos atrás, pelo menos, esse número não ultrapassava três dígitos. Somos, é certo, seres da imagem e para a imagem. A imagem é o nosso verbo e para traduzir seu impacto inventamos a palavra. Barthes em seu A Câmara Clara relaciona a fotografia à morte. Diz ele: “os outros – o Outro –desapropriam-me de mim mesmo, fazendo de mim com ferocidade um objeto, mantêm-me à mercê, à disposição, arrumado em um fichário, preparado para todas as trucagens sutis”. Barthes não viveria para conhecer os truques por vezes torpes do photoshop e o reinado lascivo das máquinas digitais, reprodutoras em larga escala de tudo o que pode ser visto sob todos os ângulos, sob todas as luzes. Essas imagens congeladas, as fotografias (e sobretudo as digitais), têm, ao meu ver, uma retórica própria e polifônica. Falam da morte, é certo, falam do medo da morte e do terror do desaparecimento, do esquecimento, da desmemória. Mas falam também de uma incapacidade de fixação do real. Assim se torna necessário o ato de congelar o real, de tranformá-lo em ídolo, em imagem, para tentar apreender sua totalidade. Mas esse é um trabalho prometéico: o real não é aquilo, não está lá, o real é uma ausência travestida de presença. A voracidade com que produzimos imagens, especialmente com o advento da máquina digital, fala ainda de nossa incapacidade de viver no real determinado pelo pensamento linear ocidental. Essa linearidade cartesiana nos arranca a possibilidade da vida ficcionalizada. A fotografia nos devolve a ficção que nos é extirpada e nos reinventa como personagens de nós mesmos. Fotografar é também escrever a nós mesmos e aos outros.

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