[imagem: Ana Vicente] |
[ou ensaios despedaçados]
I
A pergunta que me faço sempre acerca do
real: o que é o real ? Para a maioria, desconfio, há um mundo, o mundo das
coisas, do cotidiano, o mundo rotineiro que pode ser ora mesquinho, ora
portador de alegria. Eu tenho outra relação com isso. Não porque eu seja melhor, pois não é disso que se
trata. É assim porque sou assim. Desse modo, o real para mim é feito de muitas
camadas e eu as vivo ora simultaneamente, ora fatiadamente. Não entenderei
nunca porque as pessoas creem que são mais reais do que Capitu, do que
Riobaldo, do que Baltasar Serapião. Na verdade, a grande maioria das pessoas
são menos reais que um grande personagem da literatura, tem menos interesse,
menos profundidade. E isso não é algo de se lamentar. É porque é. Do mesmo modo,
uma obra de arte é uma existência para além da sua forma, um grande filme ou
uma grande peça de teatro é um modo que essas existências encontram de se
presentificar para nós. Não, não se trata de uma metafísica. Se trata de uma
multiplicidade. E é nela em que eu vivo. Hoje, todos os que leem a saga de
Gregor Samsa estão apenas dando corpo para o que ele é na verdade e ele é mais
do que aquilo que foi capturado no livro. Gregor Samsa sou eu. Então, não
pensem nunca que essa vida é menor, ela dói, e sangra tanto quanto a sua. Só
que de outro modo.
II
Luís
Calixto não veria o ano 2000. Morreu sem que visse o alvorecer do novo século,
mas antes disso me ensinou importantes lições sobre cultura, poesia, sobre o
real mestiço de que se compõe esse Brasil latino-americano. Mestre do samba de
coco da cidade de Arcoverde, em Pernambuco, Luís Calixto era um artista em
ebulição lidando com a arte em sua multiplicidade de linguagens. A arte era o
samba, era o improviso, era a incursão do alto no baixo, e o seu contrário, era
o instrumento e o boneco que fazia com o material que estivesse à mão, o cano
de pvc ou a quenga de coco. A arte era o diálogo com a alteridade. O trabalho
de “continuança”, como dizia. Com ele tentei aprender a dançar e a tocar
pífano. Com ele aprendi que o real tem tintas diferentes. Ele tomou pelas mãos
a mim e a uma geração e ensinou algo sobre história, cultura e memória ali
mesmo, na nossa cidadezinha perdida nos confins do sertão. Foi meu mestre,
mestre do meu compadre Lira e dos demais componentes do extinto Cordel do Fogo
Encantado, sem falar dos tantos que foram influeciados por seu trabalho
agregador: as crianças dos assentamentos sem-terra, as professoras e alunos das
escolas públicas, o povo, essa categoria indistinta e onipresente da qual
fazemos parte você e eu. Mestre e
aprendiz, Luís Calixto não teve vergonha de ensinar e tampouco de morrer
aprendendo. Em seus últimos tempos de vida, se comportou serenamente perante a
morte que se aproximava e da qual tinha plena consciência. Deixou o samba de
coco numa segunda-feira quente de novembro de 1999, como que repetindo um dos
versos que mais cantava: “Vou mimbora dessa terra segunda-feira que vem,
quem não me conhece chora, quanto mais que me quer bem.’’ Seu enterro, um grande circo místico,
procissão medieval sertaneja, foi acompanhado por brincantes, pernas-de-pau, tamancos
de coco, palhaços sem maquiagem, numa cena digna de Fellini ou de Macondo. Na
sua vida e na sua morte Lula Calixto me ensinou e me ensina que o real é outra
coisa.
III
Quando a
luz está acesa, perdemos o escuro. Transitar entre essas duas categorias talvez
seja conseguir viver no real exato. Mas quem o consegue? Trabalho perseguindo
esse real que habita o lado A e o lado B e creio que esse é todo o trabalho da arte,
ou seja, conseguir dizer que uma coisa é uma totalidade, que um objeto é a soma
de tudo o que se sabe e se diz sobre ele e de tudo o que não foi dito e não se
sabe. Que a soma entre o vazio e o infinito é, ao mesmo tempo, imponderável e
concreta. E mais uma vez recorro a uma imagem que para mim traduz essa tensão: “Hoje
vemos em espelho, mas chegará o dia em que veremos face a face. Hoje conheço em
parte, mas então conhecerei como sou conhecido”. Há quem me diga que esse
paradigma do real e das coisas dentro do real foi superado pela urgência do
virtual, pela simultaneidade exigente do virtual. Sem querer ser simplista
repito que com a luz acesa perdemos a possibilidade da escuridão, os acessos
que a escuridão oferece, outra verdade.
IV
Tenho
certamente cerca de cinco mil fotografias armazenadas em discos, Hds e outros
suportes para além do papel. É um número aproximado, obviamente não me dei e
nem me darei ao trabalho de contar. Até uns dez anos atrás, pelo menos, esse
número não ultrapassava três dígitos. Somos, é certo, seres da imagem e para a
imagem. A imagem é o nosso verbo e para traduzir seu impacto inventamos a
palavra. Barthes em seu A Câmara Clara relaciona
a fotografia à morte. Diz ele: “os outros – o Outro –desapropriam-me de mim
mesmo, fazendo de mim com ferocidade um objeto, mantêm-me à mercê, à
disposição, arrumado em um fichário, preparado para todas as trucagens sutis”.
Barthes não viveria para conhecer os truques por vezes torpes do photoshop e o
reinado lascivo das máquinas digitais, reprodutoras em larga escala de tudo o
que pode ser visto sob todos os ângulos, sob todas as luzes. Essas imagens
congeladas, as fotografias (e sobretudo as digitais), têm, ao meu ver, uma
retórica própria e polifônica. Falam da morte, é certo, falam do medo da morte
e do terror do desaparecimento, do esquecimento, da desmemória. Mas falam
também de uma incapacidade de fixação do real. Assim se torna necessário o ato
de congelar o real, de tranformá-lo em ídolo, em imagem, para tentar apreender
sua totalidade. Mas esse é um trabalho prometéico: o real não é aquilo, não
está lá, o real é uma ausência travestida de presença. A voracidade com que
produzimos imagens, especialmente com o advento da máquina digital, fala ainda
de nossa incapacidade de viver no real determinado pelo pensamento linear
ocidental. Essa linearidade cartesiana nos arranca a possibilidade da vida
ficcionalizada. A fotografia nos devolve a ficção que nos é extirpada e nos
reinventa como personagens de nós mesmos. Fotografar é também escrever a nós
mesmos e aos outros.
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