08 março, 2010

O Santo, o Vestido, o Mito: A Festa da Menina Morta

 [frame do filme A Festa da Menina Morta]

O filme de estreia de Matheus Nachtergaele, A Festa da Menina Morta, pode  ser "lido" como um pequeno tratado sobre a identidade nacional. Há 20 anos uma população ribeirinha da Amazônia cultua um santo vivo  e uma relíquia de uma menina supostamente morta, um vestido rasgado, prova irrefutável do seu desaparecimento trágico. Em torno dessa morte e desse santo efeminado, que mantém uma relação incestuosa com o pai, vive o vilarejo. O santo e a menina são o motivo de existência daquele povo. A festa anual, ao modo das festas de padroeiro que movimentam tantas cidadezinhas Brasil afora, o único futuro possível para o qual caaminham aqueles homens, mulheres e crianças. Além disso, nada mais, a não ser talvez, o álcool, a cachaça, combustível para suportar uma existência sem sentido ou perspectiva.

Se vasculharmos rapidamente nosso imaginário teremos às pencas santos de devoção popular, da Menina sem Nome do Recife à Antoninho da Rocha Marmo em São Paulo; festejos em torno de uma fé cega e irracional, como a festa de Juazeiro do Padre Cícero e de Nossa Senhora Aparecid, cidades que se alimentam e prosperam em torno do misticismo e da morte em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, amém. Mas não é exatamente disso que falo quando remeto ao "conceito" de identidade nacional. O que quero dizer na verdade é que por baixo de tudo isso o brasileiro é um povo dado à fabulações e acho, opinião estritamente pessoal minha, que isso é que dá a liga das nossas relações enquanto povo. Fabulamos, inventamos, acreditamos que o real não é simplesmente o real. Talvez uma das frases prediletas do brasileiro seja aquela que diz "existe muito mais entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia".  Até porque entre a filosofia e a fabulação, ousamos preferir a segunda. Ou não?

Isso  não se configura como uma crítica ao "caráter nacional". Seria, muito mais, uma constatação e, claro, um reconhecimento. Obviamente quando se fala em identidade nacional, caráter de um povo etc, etc, há uma tendência à generalizações. Mas não quero, sinceramente, generalizar.  Podemos ser e somos Macondo e ao mesmo tempo tentamos apontar nossas antenas ao infinito. E esse me parece o grande choque entre tradição e modernidade, se é que podemos falar nela.

O filme de Nachtergaele é intenso, nervoso e pungente. E me diz, aquele é um lugar no qual já estive. E talvez me diga mais, aquele é um lugar no qual estou. E talvez me diga, ainda, aquele lugar sou eu. Com uma fotografia irretocável (e a fotografia de um filme é algo que me pega pelo coração e pela razão) e com cenas que falam mais em seu silêncio (quase ao modo de Kurosawa, eu arrisco), A Festa da Menina Morta é perfeito até nas suas imperfeições. E a mais forte delas é a trilha sonora com letras elaboradíssimas se quisessem passar mesmo por benditos e novenários populares. Não são e não passam. Pelo contrário,  são  letras extremamente "teatrais" e nisso mora uma força inesperada, pelo meu ponto de vista, pois expõem o olhar espantado do Brasil "erudito", "culto" e "artístico" perante o mundo de cabeça para baixo que é regido por questões de fé e misticismo.

Para falar em detalhes e imagens, atenção para a referência nada sutil à loucura mítica de Arthur Bispo do Rosário e à imagem de São Sebastião, o santo mais feminino do panteão católico ao meu ver, com cabeça de boneca no lugar da original.

Enfim, uma belíssima estreia.

Um comentário:

Wilson Torres Nanini disse...

Você deve ter gostado tanto, pois sua poesia é irmã da do filme. Algo de lascas, de coração atado com roseira, de noite de núpcias em plena missa de primeira eucaristia. Abraços!