12 setembro, 2008

Desejo e Reparação



ou "Sobre o coração cruel das crianças"

Advertência: Em geral, leio o livro e, só depois, assisto ao filme. É quase um Transtorno obssessivo-compulsivo. Não posso, sob hipótese alguma deixar de conhecer um em detrimento do outro. É como se ficasse em dívida para comigo mesmo, para com minha lucidez, compreensão. Foi assim com O Nome da Rosa, A Casa dos Espíritos, Como Água pra Chocolate, para citar apenas alguns dos livros/filmes que deram início a esse hábito há muitos e muitos anos atrás. E será assim, por exemplo, com o Ensaio sobre a Cegueira, o filme, posto que já li o monumental romance de Saramago. Será também com o Pergunte ao Pó, o filme de Robert Towne, que me recuso a assistir porque não li ainda o romance do John Fante (sim, uma falha na minha formação literária básica). Coloco tudo isso, porque ontem não resisti e assisti Desejo e Reparação (Atonement), filme de John Wright baseado no livro Reparação, do britânico Ian McEwan (no Brasil editado pela Cia das Letras). Coloco tudo isso, porque não li ainda o livro e como todo bom obssessivo-compulsivo, preciso justificar para mim e o universo o motivo de violar as regras importantes e vitais que eu mesma criei. A justificativa talvez não satisfaça aos deuses, mas a verdade pura e simples é que não resisti.

Agora, o filme:



Desejo e Reparação é um dos filmes mais incríveis que assisti nos últimos tempos. A direção de Wright conduz o espectador com segurança numa trama tão fraturada quanto um quebra-cabeças. A narrativa, por meio de rupturas, parece querer advertir que todo olhar é passível de manipulação e que essa manipulação pode ser realizada por nós mesmos, nosso preconceitos, imaginação e perversões, ou pelos outros.

Em 1935, Briony Tallis é uma menina talentosa e precoce. Num dia quente de verão, no interior da Inglaterra, ela acaba por concluir sua primeira peça teatral, a qual pretende encenar para saudar a chegada do irmão mais velho. No entanto, os primos que interpretariam os personagens se rebelam e, Briony, aborrecida, vai até a janela, onde presencia uma cena de intimidade entre sua irmã mais velha, Cecília, e Robbie Turner, o filho da empregada, ao qual sua família custeou os estudos em Cambridge. Enciumada, pois ela mesma nutria uma paixão platônica e infantil pelo rapaz, Briony parte num movimento de desconstrução/destruição do amado, movimento que, aliado a alguns mal-entendidos ao longo do dia, resultará numa mentira escabrosa capaz de destruir vidas.

Como uma uma criança onipotente e cruel que, por birra, quebra o brinquedo predileto, Briony é vítima de si mesma, de seu ciúme, da sua imaginação distorcida. E se deixa, assim, vitimizar por circunstâncias e pessoas que conduzem seu olhar entorpecido e acrítico. Briony acusa Robbie de um crime e assim, separa-o de sua irmã, num ato que continuará a ter conseqüências trágicas no futuro.

o novelo, a novela
Durante toda a sua vida, Briony (interpretada magistralmente por Saoirse Ronan, Romola Garai e Vanessa Redgrave) tentará reparar o mal cometido e aí chegamos à grande sacada dessa história, o enovelamento entre ficção e realidade, com a escrita alinhavando a trama durante todo o percurso (alinhavo que, na tela, é colocado sob a presença de letras datilografadas e pelo som das teclas, num recurso parecido com o que foi utilizado em Nome Próprio, filme de Murilo Salles).

Daí se chega à onipotência do autor e algumas questões: O real pode ser mudado pelas palavras? A escrita tem o poder de alterar os acontecimentos? Quais os limites entre realidade e ficção? Verdade e mentira são categorias irmãs da realidade e ficção? É o que atormentará Briony até o fim da vida e o que, acredito, move alguns escritores. Uma vida num livro é menor, menos verdadeira ou menos real que uma vida fora de um livro? Somos ou não somos, todos, ficção? Somos ou não passíveis de ter duas ou mais versões de nós mesmos?

Seja adentrando pelos horrores da II Guerra Mundial ou das guerras íntimas que, às vezes, travamos com a nossa consciência, o filme Desejo e Reparação se mostra uma pequena jóia do cinema contemporâneo, com um elenco afinado, um roteiro bem-acabado, uma fotografia primorosa que transita num dos aspectos que mais me encantam na arte, o jogo de claro/escuro.

É um daqueles filmes que dão vontade de rever. E assim o farei, assim que ler o livro. O próximo da minha lista. Aguardem o comentário.

3 comentários:

: A Letreira disse...

Compramos este filme, embora ainda não tenhamos lido o livro. Também tenho este vício que você tem (preciso ler antes de ver, para não criar uma imagem prévia do personagem esterotipando-o com o ator escolhido). Só pulei esta regra uma vez, e foi muito bom... Lavoura Arcaica. Saí do espaço Unibanco sedenta por uma livraria. Depois comprei o livro e o tenho na cabeceira... perfeito! Livro e filme, simbiose pura. Bjprocês.

Marta disse...

Querida, segui sua sugestão e aluguei esse DVD finde passado, sem ter lido o livro. Amei. Aliás, esse filme falou tudo, nem senti falta do livro.
Além de tudo que vc falou sobre o processo de criação e memória, acrescento a abordagem da culpa. Percebe que a culpa passa a ser o motivador da vida de Briony?
Ah, e também não vamos esquecer a belezura que é aquele casal, com os lindíssimos James McAvoy e Keira Knightley.
Valeu a dica!
Beijo,
M

Marta disse...

Querida, segui sua sugestão e aluguei esse DVD finde passado, sem ter lido o livro. Amei. Aliás, esse filme falou tudo, nem senti falta do livro.
Além de tudo que vc falou sobre o processo de criação e memória, acrescento a abordagem da culpa. Percebe que a culpa passa a ser o motivador da vida de Briony?
Ah, e também não vamos esquecer a belezura que é aquele casal, com os lindíssimos James McAvoy e Keira Knightley.
Valeu a dica!
Beijo,
M